segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Bebendo música



A canção popular cria e recria a todo instante, ritmos, sonoridades, construções verbais e poeticidades que interferem no cotidiano auditivo das gentes e na composição de retratos das épocas. Incorpora esse caldo, ativo no inconsciente coletivo, às sensações de pertencimento a uma determinada cultura, a saudosidade ancestral e à criticidade permanente das conjunturas políticas.
A canção tem a função, se assim podemos falar, não apenas de remexer o corpo ou ativar as sensações elétricas das romanticidades efêmeras. Coisa em que a maioria que “dá voltas no trio” parece acreditar. A canção é, sobretudo, a sensibilidade artística, sob os cânones de uma plasticidade datada, aplicada sem peias nem cabrestos a sentimentalidade de um povo. Um caminho lúdico, em primeira mão, de se reconhecer e participar da vida e das marés tempestuosas da história.
Pareço, a primeira vista, teórico demais, ideologista demais, hermético demais e outros istas a mais demais nesse começo de texto. Sei que posso soar esnobe para alguns. Mas posso me explicar, com sua permissão, caríssimo leitor. A música popular é elemento fundamental para a aprendizagem, para a vivência e auto estima de um povo. Irredutivelmente, é preciso ser consumi-la e ponto final. Penso dessa forma mesmo e talvez não saiba dizer a mesma coisa com palavras mais simples. Foi assim que sempre compreendi (ou tentei compreender) a música – mais precisamente, a canção popular (visto não termos, brasileiramente falando, uma tradição erudita, clássica, por assim dizer) – de minha época, desde a minha distante e persistente adolescência.
Não fiquei imune aos primeiros acordes que ouvi de Belchior, Raul Seixas, e Ednardo e Luiz Gonzaga e Capiba e Jackson do Pandeiro e Trio Nordestino e. Não tinha como. Nem com Livardo Alves, Vital Farias, Cátia de França, Biaia,
Zé e Elba Ramalhos, paraibanos de fé. Nem muito tardiamente a Disparada de Geraldo Vandré e Theo de Barros, mesmo sendo paraibano. A mandíbula do burro executada no acompanhamento de um frenético Jair Rodrigues ressoa no meu ouvido a todo instante.
Falei que ouvi tardiamente a disparada de Vandré e foi. O que só me convenceu, também precocemente, da nossa pobreza cultural. Pobreza não em termos de produção (nisso, somos admiráveis), mas nas difusões enviesadas da cultura endógena. Santos de casa jamais fazem milagre por essas bandas. O que, por fim, nos acomete de um desconhecimento pífio de nossa produção cultural, deixando faixas de público e regiões totalmente ignorantes do “barulhinho bom” que se faz por aqui.
Por gostar de remar contra a maré é que casei com a música da Paraíba de várias maneiras. No cartório e na Igreja - com juiz padre, padrinhos e testemunhas - me casei com a música dita “séria”, uma Música Popular da Paraíba com certa griffe que tanto agrada aos intelectuais, música cabeça. Mundanamente, fui seduzido e me amancebei com a música brega. Aí rolou uma cerimônia simples, com direito a audições de música  de parques de quermesse e “festas americanas” do subúrbio que nos pariu. Para completar, ainda flerto auditivamente com toda a produção instrumental, experimental, eletrônica, multimídia, raps, repentes e batuques produzidos por contemporâneos. Virei amante fiel, cuidadoso, extremado, com ouvidos liberados para todos que usam a música como forma de expressão e creem no ato de criar como uma forma sempre renovada de viver a vida como passagem e o instante como forma de interação.
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 Para hoje a pedida é Livardo Alves, em verso e ironia, na canção Doido da Paraíba, música do álbum duplo Malandro do Morro.
Pra ser doido na Paraíba
É preciso ter juízo
Tem que pular feito guariba
Tem que cantar de improviso
Tem que lamber, dendê, macaíba
Chupar um limão e dar um sorriso
Tem que ser artista, masoquista, equilibrista
Alquimista, alpinista
Tem que ser polivalente, inteligente
Inconsequente do jeito que o povo gosta
Eita doido maneiro
Não rasga dinheiro, e nem come bola
Eita doido faceiro
Que bate pandeiro e toca viola
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sábado, 20 de novembro de 2010

A armadilha da crítica

Por um tempo, alguns generosos amigos, profissionais de imprensa, me instigaram a atuar na área do jornalismo cultural como critico de música. Achei-me inicialmente, além de lisonjeado pela referencia, muito apto e afoito para a empreitada. Depois, friamente, comecei a remoer e analisar o status da critica produzida por essas bandas e conclui, após ouvir a voz da razão, que a Paraíba pode até ter tradição e nomes na critica literária e cinematográfica; na área musical ainda precisamos construir um. E que eu não dispunha de tendência a bajulação, nem competência suficiente para o feito. Deixei de lado, então. Posso escrever sobre musica, mas saberei sempre das minhas limitações. Mesmo em nível de Brasil, reconheçamos, é difícil identificar um ou dois bons críticos de musica. A grande maioria não apresenta performance louvável. E não seria ali que eu queimaria meu filme Kodak 36 poses.
Para ser critico de musica de mínima competência penso ser preciso reunir alguns qualificativos. Conhecimento teórico e técnico de musica, vasta cultura humanística nas áreas sociológica, antropológica e estética e, finalmente, conhecimento e sensibilidade para perceber a evolução inerente a arte, no decorrer da história. Ah, ia esquecendo, uma boa dose de isenção e liberação das paixonites estéticas. Fora isso, teremos um esquadrão de palpiteiros, oportunistas, esnobes, mercadores de novidades, fomentadores de preconceitos estético-musicais e formatadores de mentes e gostos, todos posando de críticos. A grande maioria, artistas frustrados ou decadentes.
A autocrítica ou auto-reconhecimento da incompetência referida no inicio desse texto tem por base essa consciência. Acho que como critico musical não passaria de um escrevinhador exímio em citar frases de canções, um impostor chegado às adjetivações e um arrogante “ouvido” de gosto estético duvidoso. Provavelmente defenderia com unhas e garras alguma posição estética, baseada nos gostos eminentemente pessoais, portanto subjetivos, falíveis, para manter a pose. No mais, posaria, sem ser criador, no máximo participante menor, de algum movimento contracultural e mandaria todo o resto para o inferno numa posição etnocêntrica.
Minhas abalizadas (pra não dizer combalidas) análises se resumiriam a impressões imprecisas, pouco objetivas e eivadas dos mais infames preconceitos. Minha ignorância esnobe estaria exposta diariamente em letras garrafais num jornal amador qualquer. O escritor Wandecy Medeiros observou certa vez que a palavra “gênio” freqüenta reiteradamente a retórica objetiva dos ícones da critica brasileira. Está totalmente certo. O apelo fácil aos chavões como esse são recorrentes. É o recurso estratégico e míope do dirigismo estético.
Um dos meus professores de critica cinematográfica ensinou-me que a critica no meio jornal serve para levar ou desestimular a ida ao cinema do potencial espectador. Certo. Porém, creio eu, tem que a haver algo mais; ao critico cabe de desconfiar das suas próprias certezas e da sua pretensa autoridade que tem por marca o pouco caso com a inteligência do leitor.
A crítica, em primeiro lugar, tem que levar o ouvinte para “dentro” da musica. Assim como a critica cinematográfica, literária, teatral ou das artes plásticas. Não é possível compartilhar, por um processo de osmose, esteticidades auditivas ou qualquer outra, mas ao momento em que você é capaz de dissecar uma obra e explicá-la convenientemente leva o ouvinte a experimentar uma fruição particular, sem influencia do seu dirigismo. Para isso as competências teórica e técnica a que nos referimos.
A adjetivação apenas é vazia, improdutiva, desonesta. Além disso, cabe ao critico contextualizar a obra, seja única ou conjunto de obras de um autor ou executante, dentro da história da evolução da música e sob o choque do contemporâneo. Daí, falemos de reconhecimento por parte do ouvinte da importância daquilo enquanto bem cultural, mesmo que não curta. As chaves da compreensão da musica passam por aí. Penso que aqui a capacidade de análise isenta nos quesitos históricos e musicais são imprescindíveis, além de doses maciças de sensibilidade musical sem preconceitos estéticos.
É muito tentador, na formatação da critica, incorrer no erro de considerar informações mindinhas – traços de personalidade, manias, traços físicos e etceteras – dentro da “analise” viciada da obra. Simples, facil. Talvez inconsciente mas, convenhamos, forma mal-carater de criticar a obra de um artista. Isso cabe bem nas colunas das revistas chinfrins de boataria e é até jornalístico, dizem, não na crítica. O que deve estar em foco é a obra ou detalhes dela. O conteúdo, a forma e o contexto, nada mais. Elementos alheios a ela não interessam, devem ser pesados racionalmente e descartados, antes de serem tomados como elementos-chave na análise que vai a pulblico. São apenas lordaça de encher lingüiça e matizam o espaço da critica como armadilha para profissionais apressadinhos.
Nós temos excelentes críticos (ou analistas) para as vertentes literárias da canção, excelentes citadores de versos. Me ponho entre eles, sem medo da critica. Reconheço, sem modéstia alguma, minha capacidade de viajar pela musica de ontem e de hoje sem problemas, lembrando letras inteiras, trechos, figuras importantes e ariscando alguns acordes ao violão. E isso não faz um critico. No máximo, um jornalista de cultura. A análise (ou simplória referencia) a versos é expediente comum, corriqueiro e empobrecedor do exercício da critica. Interpretar versos e sobre ele apontar a genialidade ou a burrice de compositor ou cantor A ou B é jogo fácil, rápido, sacana. Adentrar, não especulativamente, na performance musical pura, seja na criação ou na interpretação, é outra e bem distante coisa, onde nós, sinceramente, estamos longe de chegar.

por Edson de França

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Samba e Lágrimas

Parecerá loucura pensar que todo o ritual que envolve os folguedos do samba – a roda, os cantos, os instrumentos, o ritmo, o festejo, a fantasia, a mulata provocante, o ritual carnavalesco – tem uma nota de tristeza como pano de fundo. Algumas vozes dirão: “Ora, cronista, não nos amole, o samba é só alegria, genuína, brasileira, não há espaço para a indigitada tristeza de que falas!”. Outros emendarão: “Ta ruim da cabeça esse ai! Isso é idéia de negrin pai João, que não tem samba no pé. Ouço samba desde minino e nunca, nem, ... tristeza... KKKKKKK... sabe nada!”
Ora, ora, dirá o cronista. Calma, meus senhores, não se apeguem jamais aos aspectos mais superficiais, óbvios e ululantes dos artefatos culturais do povo. Estes sempre hão de surpreender pela faixa espessa de nuanças, quase impenetrável, que acomoda a leitura tátil dos emocionados – que parece ser o vosso caso - ao óbvio mais obvio. Porém, convenhamos que a moldura da arte do povo é qual um disco de vinil, composto de ranhuras; é preciso rasgar-lhes os sulcos da superfície para extrair sons. Assim, é preciso ouvir com os ouvidos da alma, ou seja, a emocionalidade em toda sua extensão, para captar a natureza dos produtos culturais em sua raiz mais profunda.
Nisso não estou sozinho. Invoco aqui as palavras sábias de Vinicius de Morais, o branco mais preto do Brasil que, no Samba da Benção, afirma que o samba é a tristeza que balança. E chamo pro terreiro mano Caetano, que emprestando sapiência à discussão reitera, na letra de Desde que o samba é samba: a tristeza é senhora/ desde que o samba é samba é assim/ a lágrima clara sobre a pele escura/ a noite, a chuva que cai lá fora.”
O samba envolve o ouvinte, em primeiro plano pela alegria, pelo colorido de sons que sacodem os corpos e alteram vozes, em letras que cantam o encantamento da vida e convidam para a festa. Socialmente, esse primeiro plano, sugere sentimentos de solidariedade, compartilhamento, folguedo coletivo e democrático. Penso que a maioria do repertório do estilo musical tem essa marca. Outro plano envolve a melancolia, os amores mal resolvidos, a tragédia pessoal ou coletiva no campo dos relacionamentos e da labuta diária, a exemplo do despejo de uma favela ou das disputas amorosas que acabam mal, no punhal ou na faca.
Tristeza e alegria, portanto, sempre foram temáticas e sugestões do samba. Contudo, mesmo na mais pungente das alegrias ventiladas pelo ritmo, a tristeza está presente. E isso irmana nosso ritmo nacional com um co-irmão distante - o blues norte-americano – , e não nos distancia do melancólico fado, nem do hermano tango argentino. É musica de festa? É. É musica de celebração? Sem dúvida. Então, porque a impressão de tristeza que o samba, assim como o blues sugere?
O samba não tem a mesma pancada sofrida do blues, esta pode ser sentida na melancolia de solos e acordes e na voz rascante dos bluesman. É o que não acontece com o ritmo desenvolvido em nossos quintais. Se podemos falar em sutileza quando falamos em tristeza, nossa tristeza sambística é sutil. Não se oferece, precisa ser sentida da pele ao mais profundo da alma. É que o samba carrega a dor do cativo, a saudade ancestral, negreira, o desenraizamento a fórceps num século onde ainda não se falava disso.
O nosso samba, talvez pela falsa impressão de alegria perene, nunca foi explicitamente considerado como canto de resistência, de protesto. Também, nunca se ouviu falar, pela história oficial, que tenha servido de código sonoro, senha, entre rebeldes ou marca identificatória de pessoas. Só a fortíssima moldura alegre do ritmo é que fica e, a não ser por alguns aficionados, sempre reduzido ao aspecto folclórico, alegrinho e inofensivo, sem qualquer outra carga semântica de leitura.
O nosso samba é, sim, a tristeza que balança conforme cantava o nosso poetinha. Mas é preciso uma sensibilidade monstra para perceber essa particularidade no nosso ritmo nacional. Ou até para associá-lo a tristeza, mesmo que alguns enredos sofridos indiquem que nem só de alegria viveu o mundo do samba. Este que envolve, desde os primórdios, a pobreza, o preconceito, a falta de oportunidade e, por fim, o aproveitamento comercial e oportunista da marca como produto de cultura de mídia.
A alegria, meus senhores, em muitos casos esconde a tristeza. Serve de refrigério para almas extremamente maculadas por sofrimentos que marcam gerações. Por aqui não tivemos, no nascedouro do samba, campos de algodão (o branco dos capuchos não significa ausência de dor); tivemos campos de cana-de-açúcar e a embriaguez da parati (uma alegria artificial e desmoralizadora). Em todos os casos, contudo, tivemos a dor de uma raça e o status do humano ao rés do chão, talvez por um dia de alegria, afinal, como diria o poeta, a tristeza tem sempre a esperança de um dia não ser mais triste não.

por Edson de França
João Pessoa, 16 de novembro de 2010

sexta-feira, 11 de maio de 2007

O caxiri é nosso!


"Salve a santíssima trindade da musica brasileira". Assim o cantor Martinho da Vila encerra a belíssima interpretação de "Patrão, prenda seu gado", autoria de Donga, Pixinguinha e João da Baiana, em gravação de 1974. Esse blog nasce sob essa convicção e pede a benção aos mestres para tratar de música no Brasil. Vivemos tempos de aridez criativa quando avaliamos o cardápio musical da mídia, mas cremos que a veia da criação habita redutos que a grande mídia não tem interesse em mostrar, nem muito menos profissionais qualificados para fazê-lo. Assim, convidamos para esse caxiri, aqueles que ainda crêem na força musical desses brasis e aqueloutros neófitos insatisfeitos com o que por aí se ouve. Caxiri é palavra indígena, representa festa de sons e bebida (celebração, ritual, comunitarismo). Esse é o espírito que presidirá os caminhos desse blog. Uma celebração à música, sem preconceitos mas com critérios muito rígidos e críticos.